Quinta, 03 de Outubro de 2024
  • Quinta, 03 de Outubro de 2024

Bear McCreary: compositor de God of War Ragnarök conta detalhes da produção

Da criação de novos temas para as famílias até a surpresa de uma participação especial.

R7 / FOLHA VITóRIA | POR FOLHA VITóRIA


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Em uma tarde do segundo trimestre de 2016, no Shrine Auditorium em Los Angeles, durante o evento de games E3, eu atravessei o palco em meio à casa lotada e uma orquestra sinfônica para conduzir um tema original que eu escrevi e ainda não havia sido tocado para o público. Antes mesmo da revelação do título do jogo, o público pôde ouvir uma trilha sinfônica arrebatadora com instrumentos populares nórdicos, coro e temas melódicos e robustos. 

Depois da minha abertura, as cortinas se ergueram, e a silhueta de um Kratos mais maduro saiu das sombras, anunciando que a série de sucesso God of War, da PlayStation, ganharia um novo título, no qual o protagonista, agora mais velho, prometia uma narrativa mais madura. Para a aclamação da crítica e o entusiasmo de fãs, o jogo foi lançado em 2018, consolidando o lugar do vingativo deus Kratos e do seu filho Atreus entre os personagens mais adorados de todos os tempos.

No segundo trimestre de 2019, eu me vi outra vez no escritório do Santa Monica Studio, desta vez para uma reunião criativa para a sequência do jogo, God of War Ragnarök. Foi lá que Cory Barlog, o diretor do jogo anterior, então me apresentou ao diretor do novo jogo, Eric Williams. Cory e Eric trabalharam juntos durante anos na franquia, e eu logo pude sentir o profundo entusiasmo de Eric pelo material e a sua enorme experiência. Depois de ler o roteiro, as proporções que God of War Ragnarök teria ficaram claras para mim. A ambiciosa sequência da história se expandiria a partir do drama pessoal entre o Kratos e o filho Atreus, introduzindo ao menos uma dúzia de personagens novos ao redor dos nove reinos da mitologia nórdica. Os elementos de impacto e as cenas de ação eram ainda mais estrondosos, e os arcos dramáticos da história eram tão comoventes quanto os da primeira história. Para trazer o suporte musical necessário para essa nova e ambiciosa narrativa, eu precisaria dar a God of War Ragnarök uma variedade de temas musicais novos. Ao mesmo tempo, esses temas precisariam fazer sentido com o meu material para God of War (2018).

No jogo anterior, eu havia mergulhado de cabeça e sem preocupação na trilha sonora, preparado para reinventar completamente o som da franquia para se adequar ao tom mais sofisticado do novo jogo. Já desta vez, eu senti a pressão de compor sob a sombra da minha própria obra passada. Gamers do mundo inteiro haviam criado laços emocionais com os meus temas musicais, e a minha obra rendeu vários prêmios importantes da indústria de games. Imaginar ampliar aquelas ideias — além de ousar pensar que eu poderia superá-las — me deixou ao mesmo tempo entusiasmado e apavorado.

Eu comecei a compor para God of War Ragnarök no terceiro trimestre de 2019, totalmente ciente de que estava no início de uma jornada que ficaria entre as mais desafiadoras da minha carreira em termos de criação.

Reproduzir VídeoBear McCreary: O compositor de God of War Ragnarök conta em detalhes a produção da magnífica trilha sonora

God of War Ragnarök é uma história de famílias divididas lutando para se reunir. Para dar suporte a essa história, eu precisava de dois temas novos para representar as famílias com que o Kratos e o Atreus se deparam durante a jornada.

Os Anões Brok e Sindri, os Irmãos Huldra, eram personagens secundários no último jogo. Eles forneciam apoio ao Kratos por meio de armamentos, além de alívio cômico e uma história emocionante de irmãos afastados que se reúnem. O papel deles em God of War foi aumentado consideravelmente, e agora os gamers viajarão até seu reino natal, Svartalfheim. Eu precisava criar um tema exclusivo para eles e que também demonstrasse algo sobre a cultura dos Anões.

O tema do Brok e do Sindri começa com um alegre ostinato de oom-pah executado em viola da gamba e nyckelharpa.

A natureza jovial do tema é destacada por uma métrica exclusiva 7/4 que proporciona um desequilíbrio assimétrico. O groove é exuberante, mas vai ficando cada vez mais pesado com a progressão do tema.

O verdadeiro charme do tema intitulado “Huldra Brothers' vem da melodia, em que se destaca um solo de viola de roda. (Eu sou o artista creditado por esse solo, embora prefira pensar que quem está tocando o tema dos irmãos para nós é um personagem chamado Ræb. Veremos mais sobre ele depois.) A melodia se constrói em torno de uma métrica assimétrica com agradáveis padrões que se repetem, com destaque para um “Scotch snap', um ritmo frequentemente encontrado na música popular escocesa.

A emocionante seção central do tema B de Huldra Brothers dá a entender que a emoção da história deles vai além do alívio cômico. 

De fato, é possível afirmar que esse tema evolui ao longo do fio da história mais do que qualquer outro. No fim do percurso dos irmãos, ouvimos o tema uma última vez, em um solo sombrio e melancólico de violoncelo, que dispensa de forma impactante o tom jovial do começo. A faixa “Ræb’s Lament', mais para o fim do álbum da trilha sonora, foi composta com a viola de roda e variações orquestrais dessa melodia. Não quero dar spoilers da história, então basta que saibam que eu fiz meu trabalho direito, e essa música alegre e cômica vai deixar você de coração partido antes mesmo de começarem os créditos de God of War Ragnarök.

O último dos temas principais que eu compus para o jogo foi para outra família e representa os antagonistas Asgardianos, o filho Thor e o pai Odin, além do próprio evento iminente do Ragnarök anunciado pela profecia. Criar uma força musical que pudesse ser ameaçadora para o Kratos era uma tarefa imensa (o tema dele começa com vozes masculinas potentes que emanam ameaça e força). Tentar compor um tema digno de um vilão e que reduzisse o Kratos em termos de poder e força bruta era uma tarefa quase impossível. Foi então que eu busquei inspiração no roteiro.

O Odin interpretado por Richard Schiff em God of War Ragnarök desafia as expectativas do público. Eric Williams o descreveu como uma cobra em meio à grama. Ele tem um semblante frágil, e seu imenso poder é implícito na maior parte do tempo. Ele não tem medo de usar a força, mas prefere se valer de meios psicológicos para atingir seus objetivos. Além disso, eu pensei na ameaça iminente do catastrófico Ragnarök, que paira no horizonte da história como uma nuvem de tempestade. Essas ideias me inspiraram a dar potência ao tema Ragnarök com um ostinato oscilante e perigoso, mas contido. Eu queria que esse padrão sugerisse poder e ameaça com o ritmo implacável de uma tercina que acompanha a trilha sonora como um trovão ao longe.

Esse ostinato vai ficando cada vez mais alto com a progressão da história. Acima dele, a melodia principal do tema Ragnarök traz uma nobreza sombria e um presságio ameaçador, sendo muitas vezes acompanhada de um coro de vozes masculinas que cantam a letra em nórdico antigo.

Eu levei cerca de seis meses fazendo esboços dos temas para o jogo, muitas vezes indo e voltando em discussões com meus parceiros de criação no Santa Monica Studio. Alguns deles vieram com mais facilidade, mas muitos passaram por cinco ou seis esboços antes de chegar a um resultado promissor. Eu tive dificuldade sobretudo com o tema do Atreus. No começo, fiquei paralisado pela forte pressão de compor um tema que estivesse à altura das minhas duas melodias mais icônicas de God of War (2018). Já no final, eu estava confiante de que os meus temas novos para o Atreus, a Angrboda, os Irmãos Huldra e o Ragnarök seguiriam o padrão das melodias que eu havia composto para o jogo anterior.

Criar a trilha sonora para God of War Ragnarök foi uma ampliação de tudo o que eu havia feito para God of War (2018), o que culminou em uma das maiores trilhas orquestrais da minha carreira até hoje. No entanto, as minhas contribuições com o jogo ainda iriam além da música.

Ainda no segundo trimestre de 2019, Eric Williams e Cory Barlog terminaram nossa primeira reunião de criação do projeto me mostrando a arte conceitual. Eu fiquei chocado quando vi, mais para o fim da pilha de papéis, um Anão robusto segurando uma linda viola de roda, com um rosto familiar e, ouso dizer, até mesmo incrivelmente bonito! No começo, achei que Rafa Grassetti, o fantástico diretor de arte do jogo, havia feito para me dar de presente um desenho de mim como Anão. Eu fiquei ainda mais chocado quando Eric e Cory disseram que aquilo não era brincadeira: eles queriam colocar aquele Anão chamado Ræb no jogo como um personagem que o Kratos e o Atreus encontram durante a jornada e queriam que eu fizesse a captura de movimentos e a voz dele!

Cerca de dois anos depois, no terceiro trimestre de 2021, eu entrei no Santa Monica Studio não como compositor, mas como ator. Chegando ao espaço de captura de movimento, o pessoal técnico colocou pequenos sensores por todo o meu corpo e na viola de roda. Eles me explicaram que os movimentos do meu corpo seriam registrados pelos sensores e instantaneamente convertidos em dados de animação para o meu avatar digital.

Entrando naquele espaço, eu fiquei surpreso com a aparência inóspita, que parecia um depósito industrial com equipamentos de última geração ao redor de um espaço vazio. Havia telas fora daquele espaço, e, quando eu olhei para elas, vi a magia de verdade acontecendo: um ambiente digital fantástico que representava uma taverna em Svartalfheim. Ao entrar na taverna digital, eu vi o Ræb e logo entendi que ele estava andando porque eu estava andando! Eu então parei, animado como uma criança com um brinquedo novo, e comecei a pular pela sala e agitar os braços, tudo enquanto via o meu avatar digital repetir cada movimento em tempo real. Ver aquele reflexo digital meu na figura do Anão foi como olhar para um espelho distorcido! Eu ria sem parar, e o Ræb copiava os movimentos do meu corpo.

Para atuar em um jogo, o artista precisa fazer sessões de captura de movimentos. O pessoal técnico me disse que, normalmente, colocam só um ou dois sensores nas mãos para registrar o movimento dos braços e que os detalhes dos movimentos dos dedos entram depois na animação. Mas, já que grande parte da minha captura de movimentos seria tocando um instrumento musical, decidiram tentar colocar sensores em todos os meus dedos. Aquilo era inédito para a equipe! Assim que terminaram, eu me sentei para tocar a viola de roda e vi na tela os dedos do Ræb tocando as teclas exatamente como eu estava fazendo.

Gravar a execução da viola de roda acabou sendo a parte fácil. Eu também tinha que fingir estar em uma taverna lotada e imitar os maneirismos que resultam das diversas interações com o Kratos e o Atreus. Eu entrei com tudo no momento e me diverti o máximo possível, sempre tentando não pensar naquela realidade esquisita em que eu, vestindo um pijama apertado e coberto de pontos, fingia ser um Anão com uma viola de roda no meio de uma sala com pessoas me encarando.

Eu adorei o processo da captura de movimentos. Mas, por mais divertido que tenha sido, aquilo não me preparou para a emoção de gravar o diálogo do Ræb algumas semanas mais tarde. Eu trabalhei com o escritor Matt Sophos em um pequeno estúdio de gravação em Los Angeles, e ele me guiou na atuação. Embora eu nunca tivesse atuado de verdade antes, eu vi que meu processo criativo como ator trabalhando com Matt era o mesmo do meu trabalho como compositor com um diretor ou produtor para fazer a trilha sonora da narrativa. Nos dois casos, o objetivo comum é fazer o público sentir algo específico em relação ao que estão vivenciando. Como compositor, eu uso notas, acordes e ritmos para alcançar o meu objetivo. Eu logo percebi que a única diferença no meu papel como ator é que, para alcançar aquele mesmo objetivo, eu uso ritmo vocal, inflexão e tom.

Eu senti uma emoção eletrizante criando o Ræb para God of War Ragnarök. Quanto mais eu trabalhava nas falas com Matt, mais eu entendia a situação do Ræb e, em especial, o que ele sentia em relação ao Mimir, que acompanhava o Kratos. Dirigindo de volta para casa depois de terminar no estúdio de gravação, eu me sentia inquieto, e meu coração queria sair pela boca. Posso dizer com segurança que as poucas horas que eu passei gravando o diálogo do Ræb estão entre as experiências criativas mais estimulantes da minha vida. Embora eu não esteja pensando em deixar meu trabalho como compositor, adoraria poder explorar essa outra forma de arte mais a fundo!



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